Medicina Baseada em Evidências: O Sofisma Científico no Caso Zika e Microcefalia

Em dezembro do ano passado, utilizei a suposta causalidade entre Zika e microcefalia com gancho para discutir o paradigma científico (ou ausência dele) no pensamento médico. O texto ganhou grande repercussão, com 57.000 acessos, citações na Folha de São Paulo e Associated Press. A partir daí, resolvi deixar o assunto de lado, pois nosso Blog não objetiva esgotar tópicos específicos, mas visa discutir ciência aplicada à medicina. Além do mais, sou cardiologista e fiquei cansado desse assunto.
Mas o assunto nunca me deixou de lado, pois colegas insistem em me mandar cada artigo publicado sobre o microcefalia. Este é o exemplo de Julival Ribeiro, infectologista e amigo de Brasília, um inconformado com a carência de pensamento científico sobre esta questão. Foi nesse contexto que Julival me mandou ontem uma manchete do CDC: "Zika Virus Definitely Causes Microcephaly", que cita um novo artigo do New England Journal of Medicine. Não li o artigo, deixei para depois, quando chega uma nova mensagem de Julival dizendo “vale a pena ler”. E nas horas subsequentes, mais três colegas me mandaram o artigo em PDF.
Daí pensei, deve ser uma nova evidência que surge, quem sabe algum estudo epidemiológico grande, mostrando uma decente associação entre Zika e microcefalia. Então resolvi verificar e me surpreendi com o fato de que não havia uma nova evidência, apenas uma análise das poucas evidências existentes até o momento.
O título do trabalho publicado ontem e que gerou essa posição “definitiva” do CDC é “Zika Virus and Birth Defects: Reviewing the Evidence for Causality”. Lendo a revisão, podemos confirmar que de fato há muito pouca evidência dando suporte à associação causal. Nenhuma novidade.
O que me chamou atenção neste artigo foi o espetacular sofisma científico criado pelos autores. Ficou irresistível, tive que voltar usar Zika e microcefalia para falar de ciência.
Aristóteles, o filósofo, foi o primeiro a dividir argumentos em duas classes: os verdadeiros e outros que não o são, embora pareçam. Estes últimos são os sofismas. Os sofismas parecem verdadeiros, pois são pautados em fatos verdadeiros. Porém estes fatos não levam necessariamente a argumentos verdadeiros.
O uso dos Critérios de Shepard para teratogênese criou um bom ambiente para sofismar, pois deu veracidade ao texto, uma veracidade baseada na autoridade de um cientista respeitável. Foi nesta ambientação que a aplicação das evidências existentes aos Critérios de Shepard se constituiu em um grande sofisma.
A leitura do artigo é um tanto cansativa, pois passa por vários critérios. Por isso vou resumir aqui a engenhosidade do sofisma. De acordo com os Critérios de Shepherd, a causalidade é sugerida quando os critérios 1, 3 e 2 ou 1, 3 e 4 estão presentes.
O critério 2 não se faz presente, tal como reconhecido pelos autores. Seria a existência de estudos epidemiológicos de alta qualidade. Sendo assim, sobra a combinação dos critérios 1, 3 e 4 para fechar a causalidade. O critério 3 existe, pois representa a descrição de um fenótipo específico relacionado aos casos. Os fenótipos estão bem descritos nos relatos.
Vamos então abordar os critérios 1 e 4, que nos apresentam interessantes sofismas.
O critério 4 diz que, em casos de associação exposição-desfecho, a exposição ao agente teratogênico deve ocorrer em momento crítico da gravidez (nos primeiros meses). Sim, há muitos relatos de casos em que a Zika foi diagnosticada nos primeiros meses.
O problema é que as observações não representam associações: quase todas são relatos de caso, representando co-existência, o que é diferente de associação, como mencionado em nossa postagem anterior. O único trabalho que demonstra associação foi a coorte longitudinal de 88 mulheres publicada recentemente no New England Journal of Medicine: 72 mulheres que tiveram sorologia positiva para Zika versus 16 de sorologia negativa. O primeiro grupo apresentou casos de filhos com defeitos congênitos, enquanto o segundo grupo não. Detalhe é que este estudo não traz o valor de P desta comparação. Por curiosidade eu calculei: P = 0.054, ou seja, esta associação, neste pequeno estudo, não alcançou significância estatística.
Portanto, este critério 4 (exposição nos primeiros meses de gravidez) é observado em relatos de caso (não são associações) e em um único estudo que "mostra" uma associação não estatisticamente significante. Sofismou, pois descreveu estudos, porém estes não são suficientes para conclusão.
Sofisma Estatístico
É a discussão do critério 1 a mais interessante do ponto de vista estatístico e científico. Este é o critério da combinação entre uma rara exposição associada a um raro desfecho (raro tipo de defeito congênito). A lógica desse critério é quea co-existência de duas coisas raras é aleatoriamente improvável. Tão improvável de ocorrer aleatoriamente, que sugere ser uma relação causal (o que não é acaso, é causa).
Sim, é aceitável que microcefalia seja considerado um evento raro. Mas Zika é raro? Claro que não, em nosso meio. Mas daí o autor usou raras observações feitas de grávidas que moravam em lugares sem Zika, que transitoriamente passaram por países como o Brasil e terminaram com um filho acometido pela microcefalia. É raro mulheres não brasileiras pegarem Zika e microcefalia é raro.
Esse método de rara exposição/raro desfecho é também chamado do “método do médico astuto”, pois caracteriza umcaso inesperado (não procurado) com que o médico se depara e por ser astuto ele percebe algo importante. No entanto,o médico só seria astuto se tivesse se deparado com um caso raro/desfecho raro antes do modismo atual.
Hoje em dia, reconhecer essa associação não faz de ninguém astuto. Não ser astuto significa que todo mundo está procurando uma associação dessa, portanto encontrar no mundo duas coisas raras coexistindo, quando o mundo todo está procurando por isso, deixa de ser raro. Este encontro deixa de ser improvável.
É pouco provável que essa rara coexistência seja encontrada aleatoriamente. Porém é muito provável que essa rara coexistência seja encontrada se todos os médicos do mundo estiverem procurando por isso.
Sendo assim, aqui não estamos diante de uma coisa inusitada. Se procuramos é fácil encontrar coincidências raras. O raro é encontrar isso sem procurar, como faria o médico astuto.
Portanto, esse é o sofisma mais inteligente de todos.
Problema das Múltiplas Comparações
Isso nos remonta ao fenômeno que faz com que, no momento inicial de testes de hipóteses, haja uma grande prevalência de pequenos estudos positivos, pois está todo mundo tentando encontrar significância estatística em milhares de observações simultâneas no mundo. Ocorre o problemas das múltiplas comparações.
Se apenas um estudo está sendo realizado e o alfa do estudo for 0.05, ao obter um valor de P < 0.05 o pesquisador vai rejeitar a hipótese nula e comprovar a hipótese de causalidade. Ele rejeita a hipótese nula pois tem no máximo 5% de probabilidade de errar por acaso.
No entanto, imaginem que 1.000 pesquisadores estão testando uma mesma hipótese, que é falsa. Se cada pesquisador usar o alfa de 0.05 (como usual), 50 estudos serão positivos (P = 0.05) por acaso (falso-positivos). 1000 x 5% = 50 estudos.
Sabemos que no período inicial do teste de uma dada hipótese, o entusiasmo faz com que cada um desses 50 estudos falso-positivos tenham mais chance de ser publicados do que cada um dos 950 estudos verdadeiro-negativos (viés de publicação).
Os autores da revisão das evidências, publicada na mais importante revista médica do mundo, falam apenas dos Critérios de Shepard, criando um ambiente sofístico. Mas se esquecem que a premissa científica inicial é escrutinar a qualidade da evidência que dá suporte às análises de causalidade. Estas evidências são de qualidade insatisfatória.
Secundariamente, os autores ainda avaliam a causalidade pelos critérios de Hill, mas esta análise deve ter feito Hill levantar do caixão. Nem comentarei.
O Estado da Arte
Do ponto de vista de experimental, está comprovado (in vitro) que o vírus da Zika tem competência para destruir neurônios. Esta informação traz plausibilidade biológica para a relação causal entre infeção por Zika e aumento da incidência de microcefalia. Mas este é apenas o primeiro passo, precisamos evoluir para confirmação de associação em estudos de qualidade, seguida de ajustes estatísticos que demonstrem que a associação é independente de confundidores. O vírus mata neurônios, mas isso é diferente de dizer que o vírus é o causador de um suposto aumento substancial de microcefalia.
Neste momento, a discussão de causalidade não pode ser definitiva, como dizem as manchetes. Assim corremos o risco de sofismar. Esta questão será resolvida dentro de uns três anos, quando o entusiasmo baixar e as evidências positivas que estão rapidamente surgindo (viés de publicação é mais prevalente na fase inicial dos testes de hipótese) forem confrontadas com evidências negativas que aparecerão gradativamente.
Depois de uma análise cuidadosa da totalidade das evidências, dentro de alguns anos, poderemos chegar a uma conclusão a respeito da probabilidade desta hipótese causal ser verdadeira.
Por enquanto, vale mais a pena discutir o que é ciência: a humildade de reconhecer a incerteza das hipóteses e utilizar a lente do método científico na prevenção das ilusões criadas pelo mundo a nossa volta.
Objetivos Didáticos da Postagem:
- Pensamento científico (ceticismo versus crença)
- Teste estatístico de hipóteses
- Casualidade versus causalidade
- Problema das múltiplas comparações
- Viés de publicação
O problema é que as observações não representam associações: quase todas são relatos de caso, representando co-existência, o que é diferente de associação, como mencionado em nossa postagem anterior. O único trabalho que demonstra associação foi a coorte longitudinal de 88 mulheres publicada recentemente no New England Journal of Medicine: 72 mulheres que tiveram sorologia positiva para Zika versus 16 de sorologia negativa. O primeiro grupo apresentou casos de filhos com defeitos congênitos, enquanto o segundo grupo não. Detalhe é que este estudo não traz o valor de P desta comparação. Por curiosidade eu calculei: P = 0.054, ou seja, esta associação, neste pequeno estudo, não alcançou significância estatística.
Portanto, este critério 4 (exposição nos primeiros meses de gravidez) é observado em relatos de caso (não são associações) e em um único estudo que "mostra" uma associação não estatisticamente significante. Sofismou, pois descreveu estudos, porém estes não são suficientes para conclusão.
Sofisma Estatístico
É a discussão do critério 1 a mais interessante do ponto de vista estatístico e científico. Este é o critério da combinação entre uma rara exposição associada a um raro desfecho (raro tipo de defeito congênito). A lógica desse critério é quea co-existência de duas coisas raras é aleatoriamente improvável. Tão improvável de ocorrer aleatoriamente, que sugere ser uma relação causal (o que não é acaso, é causa).
Problema das Múltiplas Comparações
Isso nos remonta ao fenômeno que faz com que, no momento inicial de testes de hipóteses, haja uma grande prevalência de pequenos estudos positivos, pois está todo mundo tentando encontrar significância estatística em milhares de observações simultâneas no mundo. Ocorre o problemas das múltiplas comparações.
No entanto, imaginem que 1.000 pesquisadores estão testando uma mesma hipótese, que é falsa. Se cada pesquisador usar o alfa de 0.05 (como usual), 50 estudos serão positivos (P = 0.05) por acaso (falso-positivos). 1000 x 5% = 50 estudos.
O Estado da Arte
Objetivos Didáticos da Postagem:
- Pensamento científico (ceticismo versus crença)
- Teste estatístico de hipóteses
- Casualidade versus causalidade
- Problema das múltiplas comparações
- Viés de publicação
Autor postado em 25/04/2016
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