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Masturbação feminina ganha as ruas e é até receita


Masturbação feminina ganha as ruas e é até receita

As mulheres sentam-se no chão e olham desconfiadas ao redor. Pouco depois das 14h de um domingo, são quase as únicas visitantes do Passeio Público, Centro de Salvador. Três homens parecem não acreditar e cochicham entre si. As mulheres, aos poucos, aprendem a ignorar o burburinho. Começa o encontro sobre masturbação feminina. Pela primeira vez em Salvador elas podem, juntas, desprender as amarras e, simplesmente, falar. Um ano e seis meses é o intervalo de tempo exato até aquela tarde do dia 27 de janeiro de 2017. Nem mais um encontro. Tocar ainda é verbo de repreensão e faltam espaços específicos para desvendar o tema.

A masturbação ainda é um corpo espinho de tabu. Descobrir o próprio corpo é, sim, saudável e natural. Mas, procure descobrir lugares de discussão sobre o auto toque. Volte para contar. Encontrar iniciativas de reunião de mulheres em torno do tema é mesmo difícil. Samo Violeta, 27 anos, artista, terapeuta e ativista pela liberdade da mulher, organizou o encontro no Passeio Público por uma luta pessoal e árdua: mostrar a outras mulheres que masturbação é autoconhecimento, liberdade e energia. Ela defende:

“Tento e tentei mostrar que o foco não é a erotização. O essencial é que nos conectemos. O corpo e a sensibilidade são muito importantes [...] Falar sobre isso [masturbação] é a forma de naturalizar e mostrar que precisamos conhecer nos conhecer”.

Entre expressões de descoberta e alegria, o encontro deve ter durado três horas. Agora, Samo planeja, em meio às tarefas da própria rotina, organizar novos encontros. Mas sabe das dificuldades que extrapolam, e muito, sua agenda. “Muitas mulheres não têm essa realidade de falar sobre masturbação, nem receberam educação sexual, foram reprimidas”, diz

O fato é: quase metade das mulheres não se masturba. A conclusão é do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, de 2017, com base em questionamentos a 3 mil mulheres de capitais como Salvador. Já o paradoxo: de acordo com um estudo sobre a frequência dos orgasmos, publicado na revista Archives of Sexual Behavior em janeiro de 2018, 35% das mulheres não gozam. O Ministério da Saúde esclareceu ao CORREIO que não há notificação compulsória para casos de disfunção sexual.

Ouça poema sobre masturbação feminina, da escritora e poeta portuguesa Maria Teresa Mascarenhas Horta:

Mesmo sem estatísticas, a produtora, taróloga e feminista Júlia Maia reconhece a falta de lugares para debate em contrapartida da demanda. Num encontro de mulheres em Recife, em 2015, sentiu a necessidade de trazer para Salvador um grupo de troca feminina. Os assuntos? Diversos. E assim nasceu a roda livre de mulheres, organizada duas vezes ao mês, com endereço que varia: ou no Rio Vermelho ou em Itapuã.

Júlia define o espaço:

“É de muita liberdade. A ideia é que todas as mulheres se sintam à vontade para falar de qualquer assunto. E a liberdade do corpo feminino é algo que tem sido muito explorada, para que elas entendam que é uma questão natural, não um tabu. O lugar de desconstrução é importante”. 

Masturbação pode ser cura
Uma paciente viúva há 20 anos entra no consultório de Patrícia Lordelo, fisioterapeuta e pós-doutora em ginecologia. A senhora tem incontinência urinária, nunca consegue prender a urina. Patrícia indica à paciente a masturbação como tratamento. Segundos de choque. “Como eu faria para contar ao padre?”, a mulher pergunta. Ao que Patrícia contrapõe, imediatamente: “Quando você se trata com medicamento, você conta para ao padre?”. A paciente segue o recomendado e, pouco depois, está curada. 

A história da mulher, a qual chamaremos de Lurdes, é apenas um exemplo real de como a masturbação feminina está ligada à saúde. A incontinência urinária é causada pela perda do tônus muscular, inclusive na região pélvica. A masturbação (ou o sexo) excita o músculo da área. O problema é, então, controlado. 

A fisioterapeuta uriginecológica, especializada em disfunções pélvicas (desde dores à falta de desejo ou orgasmo), explica que a masturbação proporciona uma série de reações físicas com potencial de tratamento:

“No momento em que você tem um estímulo em qualquer local que te proporcione prazer, são liberados neurotransmissores que reduzem a dor. [...] Num nível de grande excitação, há a liberação do sistema parassimpático e orgasmo”.

A falta de masturbação, no entanto, não está diretamente ligada a possíveis disfunções adquiridas. Mas Patrícia Lordelo metaforiza: "É preciso conhecer as minhas estruturas musculares. Como conseguir mexer o braço corretamente, se eu não conheço?".  

E a ciência da masturbação está prestes a completar 70 anos. No ano de 1949, o médico ginecologista Arnold Kegel mostrou como “exercícios para a região genital” eram eficazes em casos de infecção urinária. Os anos passam e a masturbação feminina começa a ser problematizada também na psicologia.

Mestre em Disfunção Sexual Feminina, Ana Paula Pitiá esclarece que a masturbação é um dos pontos analisados em casos específicos de pacientes. Mas a orientação, quando ocorre, é sempre progressiva. Ela explica:

“Mais do que falar em masturbação, importa saber como ela está ligada a outras questões. O que é que ela pensa sobre olhar, se ver, se tocar? É preciso que esses bloqueios sejam rompidos. Afinal,  como é que essa mulher foi construída a ponto de não considerar a masturbação?"

A masturbação é, ainda, uma temática difícil, classifica a psicóloga. O tabu continua mesmo para mulheres com queixas sexuais. “A repressão e a educação sexual inadequada incentivam isso. Na verdade, os estudos mostram que a qualidade de vida sexual está ligada à qualidade de vida. Tanto que a OMS [Organização Mundial da Saúde] inclui a saúde sexual como uma pauta”. Aos poucos, novas alternativas conseguem encontrar espaços entre uma ainda fortalecida rede de dúvidas e preconceitos sobre a masturbação feminina.

Ginástica íntima 
“O prazer da mulher é o próprio sagrado feminino”, diz, logo no início da entrevista à reportagem, Yabá Luz. A terapeuta holística e “conhecedora dos saberes femininos”, como gosta de pontuar, é defensora do auto toque como uma ativação da sexualidade. E, com o Pompoarismo, técnica oriental milenar, Yabá busca levar a mensagem ao maior número de mulheres possíveis.

A prática funciona da seguinte forma: com impulsos e contrações na região vaginal feita com ou sem ajuda de pequenas pedras, cujo tamanho varia a depender do corpo de cada mulher. As pedrinhas de cristal são introduzidas na região vaginal, por um período de três meses. Diariamente, o uso é de seis horas mínimas ou 12 horas, no máximo. Yabá relata como funciona o processo:

“Sua vagina é rugosa e, quando você começa a usar a pedra, você vai percebendo a mudança. É um trabalho realmente energético. O objetivo não é sentir a pedra dentro de você, mas você sentir o processo de transformação”. 

Não é, necessariamente, um curso de masturbação. Nem poderia. Mas é indiretamente que o Pompoarismo contribui para o processo de autoconhecimento sexual, afirma Yabá. “Geralmente, são mulheres que estão feridas, afastadas de sua naturalidade. A energia sexual é o que nos faz pensar. Ajudar a pensar uma vida autônoma, na qual você percebe o seu corpo”, continua. Nos dias 28 e 29 de julho, ela ministrará um curso de Pompoarismo em Salvador, por R$ 300. No primeiro dia, o evento acontece na Kasa Kuranda, Itapuã; no segundo, na Casa Guió. 

A terapia tântrica é outra proposta de conexão com o corpo. Baseado numa filosofia de princípios sensoriais, o Tratam é um estilo de massagem milenar. A terapeuta tântrica Satta Prem esclarece que o foco não é a masturbação. Na verdade, nem há um foco.

“A ideia é que todo nosso corpo é orgástico. A massagem acontece nos quatro lados do corpo e uma das fases é de massagem no ponto G ou a chamada mensagem prostática”, afirma.

A sessão custa em torno R$ 400 e dura, em média, uma hora e meia. Minutos de enxergar “o prazer como algo natural”, resume Satta. 

Sexualidade no SUS
Na triagem do consultório, as pacientes recebem uma ficha. Preenchem o nome, a idade, as queixas. Surge, entre as perguntas: “Você já se masturbou?”. Critério básico para o atendimento no único Ambulatório de Sexualidade Feminina gratuito de Salvador, vinculado ao Hospital das Clínicas, inaugurado em abril deste ano. Algumas se assustam, até temem em responder. Mas, para a coordenadora da unidade e ginecologista Lorena Magalhães, a ordem é seguir:

“Existe uma educação repressora. Às vezes, pergunto onde está o clitóris e muitas nem sabem. É legítimo confrontar isso. E é bom transferir uma responsabilidade pra a gente: você tem que se conhecer”.

Os atendimentos acontecem às quintas-feiras, das 13h30 às 17h, e a marcação pode ser realizada todos os dias, no centro de saúde, no Canela. A demanda, pondera a médica, é “grande”, e foi justamente a procura o motivo da criação do ambulatório destinado a tratar problemas de ordem sexual.

As pacientes, geralmente, encaixam-se num mesmo padrão: mulheres na faixa dos 40 anos, casamento longo, com pouco ou nenhum desejo sexual. O tema masturbação é, por isso mesmo, levantado aos poucos. 

“Para se ter ideia, o tabu é tão grande, que às vezes elas  marcam e não vão às consultas. Ficam nervosas. É preciso conhecer as histórias: o que foi que ela ouviu da mãe dela? Como ela se enxerga como mulher? Existe uma percepção de relacionamento abusivo?”, conta.

Só então, a masturbação é, de fato, apresentada. “Coloque a mão”; “Sinta o ritmo”; “Veja como fica bom para você”. As indicações são feitas durante a consulta. É preciso ir além de informações sobre como evitar gravidez e doenças sexualmente transmissíveis, acredita a ginecologista. “Precisamos mostrar perspectivas para as nossas meninas. Mostrar que elas podem muito”. Podem tudo, se quiser. Inclusive, sentir prazer.


Autor postado em 15/07/2018


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