"Engolia o choro e voltava a jogar": A trajetória de uma Formiga olímpica

Mas mesmo assim eu continuava. Eu apanhava, no outro dia eu ia lá e jogava de novo, apanhava, engolia o choro e voltava a jogar". O começo de Formiga não foi fácil. A luta para ter a liberdade de poder jogar futebol durou alguns anos. A resistência dos irmãos, principalmente o mais velho, tornaram o caminho mais árduo, mas não menos gratificante para a jogadora que vai para sua sexta Olimpíada quando entrar em campo com o Brasil nesta quarta, às 16h (de Brasília), no Estádio Olímpico, diante da China - o GloboEsporte.com acompanha em tempo real e ao vivo em vídeo.
- Tive problema dentro de casa justamente por causa do meu irmão. Ele não queria que eu jogasse bola no meio dos meninos por ser a única mulher. Hoje eu prefiro entender e aceitar que era uma parte de preocupação e não preconceito porque por eu ser a única mulher e tinha meninos com mais idade do que eu, homens na verdade. Poderiam agir com maldade e eles me proibiam. Mas mesmo assim eu continuava. Eu apanhava. No outro dia eu ia lá e jogava de novo, apanhava, engolia o choro e voltava a jogar. Até que chegou um ponto em que eu fui convidada a jogar - disse Formiga em entrevista exclusiva ao GloboEsporte.com.
A disputa por um lugar ao sol no futebol foi intensa. Presenteada com bonecas quando criança, ela logo arranjou uma forma de adaptar. Já que não ganhava uma bola, o jeito era tirar a cabeça do brinquedo e usar como instrumento para praticar a modalidade. Vendo a cena, seu padrinho finalmente se convenceu que a alegria de Formiga não estava em ganhar aquela barbie princesa da vitrine. Os dribles já se desenhavam em sua mente. Não tinha como voltar atrás.
- Acho que a maioria das meninas começa desse jeito no futebol. Ganha uma boneca, mas na verdade querendo ganhar uma bola. Eu brigava com meu irmão porque ele ganhava a bola e eu boneca e eu queria a bola dele. Arrumei um jeito de arrancar a cabeça da boneca e começar a chutar. Não tinha jeito. Eu me lembro que meu padrinho meio que ficou assim e nunca mais quis me dar boneca. Começou a querer dar bola realmente porque ele percebeu que o negócio mesmo era futebol.
Do passado, o ensinamento e a frieza nos momentos decisivos. Formiga conta que, em razão dos conflitos com os irmãos, aprendeu muito cedo a lidar com as dores que a vida pode causar. Aprendeu que, naqueles momentos, era melhor "engolir o choro" e seguir adiante. Ressalta que as adversidades sempre fizeram parte do seu mundo. Quem sabe, essas barreiras rompidas tenham assegurado às meninas da atualidade uma maior compreensão dos pais para que possam praticar o futebol sem preconceito ou ao menos sem o enorme preconceito do passado.
Hoje tem muitas meninas que não passam pelo que eu passei porque a aceitação está muito grande. Os pais hoje levam suas filhas para escolinhas, levam para jogar e incentivam. Essa minha resistência só foi em relação aos meus irmãos. Claro que se eu tivesse essa oportunidade que muitas hoje têm de não ter esse impasse dentro de casa talvez eu não saberia lidar com as dores da vida. Comecei a saber lidar muito cedo com essas coisas. Acho que por isso que sou desse jeito. Sou meio fria, ao mesmo tempo durona, engulo meu choro, deixo para chorar depois no momento adequado eu vou lá e choro para não demonstrar muito para as pessoas em alguns momentos. São situações que você passa na vida e querendo ou não tem que ser forte e saber lidar com as adversidades da vida e as coisas que acontecem no dia a dia. Todo mundo fala assim: "jogador de futebol, a vida é uma maravilha". E realmente não é. Quem acompanha a gente, sabe quando a gente começou e até agora a situação do futebol feminino não é aquela maravilha toda.

Mas Formiga não esteve sozinha nessa luta para se tornar a brasileira com mais participações em Olimpíadas, superando Fofão, do vôlei, que soma cinco. Ela contou com dona Celeste Maciel Mota. Se os irmãos proibiam as saídas de casa para jogar, a mãe logo soltava o grito: "Tome dinheiro, minha filha, vá jogar". E ela ia. Se fosse preciso, dona Celeste enfrentava os filhos para que sua filha pudesse realizar o sonho. E assim foi até que Miraíldes pudesse deixar o lar em Salvador, na Bahia, e seguir o destino em um clube.
- É como eu falei. Eu compreendo, vejo por um outro lado. Quando mais nova não pensava dessa maneira de proteção, preconceito deles ou maldade de estar me batendo. Penso também que como eu me destacava mais do que eles os amigos ficavam zoando e sobrava ainda mais para mim. Eu falo para eles que não precisava a gente ter esse tipo de distância um do outro porque me serviu muito. Serviu muito para ele também. E tem a minha mãe, que sempre estava ali: "Tome dinheiro, minha filha, vá jogar". Incentivando, incentivando. Eles me batiam, ela ia lá e batia neles. Principalmente agora ver minha mãe feliz, vendo meus jogos e eu fazendo algo que tanto amo.
O capítulo olímpico recomeça nesta quarta. Com o pontapé inicial, ela chega à marca de atleta de esportes coletivos que mais participou de Jogos Olímpicos - ao lado do espanhol Manuel Estiarte, do polo aquático, e da russa Evgenia Artamonova Estes, do vôlei. No currículo, ela tenta repetir Estiarte, que foi campeão olímpico com seu país. Formiga lembra a dor das duas pratas. Não por renegar um segundo lugar, mas por saber que tanto em Atenas como Pequim o ouro era possível.
- É complicado porque a gente sabia que essas duas chances que a gente teve...não vou dizer que seria fácil. Mas talvez a gente tinha ali realmente 100% de chance mesmo, mesmo de ganhar porque todas as seleções naquela época foram reformuladas. Mudou totalmente. E a gente continuou na sequência com as mesmas jogadoras. Todas se conheciam. A gente estava voando. A gente vinha em uma sequência de jogos, treinos de tudo o que o Renê fez. Bate essa tristeza porque a gente se entregou tanto, fez de tudo um pouco para realmente conseguir aquelas duas medalhas. E a gente se pergunta o que realmente aconteceu porque a gente sabe que estava todo mundo concentrado. Talvez sim a gente venha pecar em algumas finalizações, ou final de jogo a gente dá uma desconcentrada, que é uma coisa que não pode acontecer. Não só no futebol feminino, mas no masculino também às vezes acontece e você acaba sendo penalizado. É a lei do futebol. Quem não faz toma. Espero fazer com que tudo dessa vez seja impecável. Que a gente consiga essa medalha aqui dentro de casa. Aí, acredito que a dúvida que alguns têm sobre futebol feminino ela acabe - afirmou ela, que fez a estreia em Jogos juntamente com o futebol feminino em 1996.
Se o ouro ainda não chegou, não foi por falta de esforço. E esse ingrediente estará novamente em campo com Formiga no Estádio Olímpico para o começo da Olimpíada, esta, que ela já confirmou ser sua última como atleta. Para a estreia, a promessa é de garra e, se preciso for, como ela diz: "derramar sangue dentro de campo". A sorte e a torcida está lançada para o Brasil.
- Eu prometo a vocês que garra, vontade, determinação desse grupo não vai faltar. Pode ter 90, 100 o que for de minutos, nós vamos correr até o último minuto. Nós vamos derramar sangue dentro de campo. Mas que nós vamos lutar por essa medalha para vocês, com certeza, iremos.

Autor: ,postado em 03/08/2016
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