Quase metade dos atletas negros das Séries A, B e C sofreu racismo no futebol
O mês da Consciência Negra, escolhido para a publicação de um levantamento que ouve 163 jogadores e técnicos negros sobre racismo no futebol brasileiro, é por si só representativo. Ao mesmo tempo, limita em 30 dias o debate de um tema que não deveria ser restrito a um único mês. Ou uma única data. Assim como 13 de maio, data da abolição da escravatura legal, novembro atrai os olhares para uma causa que persegue as pessoas de pele escura no Brasil: serem invisíveis e, quando notadas, tratadas de forma inferior. Mas não é o suficiente. O problema não começa nem acaba nos estádios. A comoção causada após os insultos a Taíson, na Ucrânia, e a agressão verbal proferida contra um segurança no Mineirão, no último final de semana, expõem ainda mais uma ferida aberta há séculos na humanidade e, em particular, em nossa sociedade.
O GloboEsporte.com passou seis meses ouvindo atletas e treinadores negros de 60 clubes das Séries A, B e C. E o levantamento, feito sob a condição de anonimato por parte dos entrevistados, aponta: 48,1% afirmam terem sido vítimas de racismo no futebol. A histórica falta de punição das entidades que organizam as competições é um ponto a ser destacado. Afinal, somente nesta temporada Fifa e CBF criaram protocolos minimamente rígidos relacionados a casos discriminatórios.
Só que limitar a causa dessas agressões à falta de consequência é raso. É deixar de lado a história escravista que permeia nossa cultura. Porque o brasileiro foi ensinado a ser racista.
Entendendo as raízes
Um bom exemplo disso é que, há menos de 100 anos, a Constituição Federal de 1934 - documento redigido para assegurar liberdade, justiça e bem-estar social - pregava em seu Art. 138 “estimular a educação eugênica”. O movimento da eugenia, disseminado pelo antropólogo Francisco Galton, tentou usar o conceito da seleção natural - do livro A Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin - para afirmar que a capacidade intelectual dos indivíduos era hereditária, por influência.
O pensamento foi importado para o Brasil em 1914, através do médico Miguel Couto - um dos responsáveis pelo artigo constitucional - e liderado pelo médico Renato Kehl, que apresentava como "soluções" para o país o branqueamento, o controle da imigração, a regulação de casamentos e da esterilização. É o que diz a mestra em história Pietra Diwan no livro "Raça Pura. Uma história da eugenia no Brasil e no Mundo".
"A gente tem que entender que o racismo não é algo que se limita ao futebol. Não podemos, nem devemos achar que o estádio de futebol é um apêndice da sociedade onde tudo é permitido e que as coisas que acontecem lá não trazem problemas históricos", explica Marcelo Carvalho, pesquisador e fundador do Observatório do Racismo.
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Levantamento aponta que quase metade de atletas e treinadores negros sofreram com racismo — Foto: Infografia GloboEsporte.com
"Embranquecimento" nos campos
Esporte destinado às elites, até então, o futebol não era palco para negros nas primeiras décadas do século passado. Em 1914, Carlos Alberto, que trocou o America-RJ pelo Fluminense, tinha por hábito passar pó de arroz no corpo para disfarçar a pele parda. Dez anos depois, foi a vez do Vasco da Gama sentir o peso social ao se ver obrigado a recusar o convite da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea) de ingressar no Campeonato Carioca de 1924, por insistir em manter em seu elenco 12 atletas negros. Em um país que escravizou cinco milhões de indivíduos, 40% do total que foi trazido às Américas, ser negro era visto como algo inferior.
No documento que ficou conhecido como Resposta Histórica, o Vasco se negou a aceitar o corte dos atletas. Veja trecho:
“Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias.”
Trecho da Resposta Histórica do Vasco — Foto: Reprodução site oficial do Vasco
Falta engajamento?
Nem mesmo o maior atleta do esporte, Edson Arantes do Nascimento, passou incólume. Antes de se tornar Pelé, o principal nome que encantou os gramados do mundo era chamado de Gasolina (derivado do petróleo), Alemão, Crioulo... alcunhas que tinham como intuito ironizar a cor da pele do atleta. A questão racial, deixada de lado pelo Rei do futebol, enquanto atleta, segundo consta na biografia “Pelé: estrela negra em campos verdes”, de Angélica Basthi, veio à tona quando maior o nome do desporto mundial virou Ministro Extraordinário dos Esportes, no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995.
Se com a bola nos pés Pelé colocou por terra qualquer ideia de inferioridade negra, afinal, que suposta supremacia não se curvou ao 10? Na posição de ministro, Edson Arantes do Nascimento direcionou os holofotes para a falta de representatividade política dos negros.
"É bem mais fácil você eleger um negro para discutir o problema do negro. Se o negro quer que se tenha uma melhora na sua posição social e uma melhora do Brasil de uma maneira geral, temos de botar a gente no Congresso, para defender a nossa raça. Onde o Pelé chega, está chegando um cidadão brasileiro de cor negra. A minha bandeira é a do exemplo, da coisa séria," disse o Rei, à Rádio CBN, após reunião com a Executiva do Movimento Marcha contra o Racismo
Vinte e quatro anos depois, o panorama segue alarmante: três das 81 cadeiras do Senado são ocupadas por negros. Governadores? Nenhum.
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O mês da Consciência Negra, escolhido para a publicação de um levantamento que ouve 163 jogadores e técnicos negros sobre racismo no futebol brasileiro, é por si só representativo. Ao mesmo tempo, limita em 30 dias o debate de um tema que não deveria ser restrito a um único mês. Ou uma única data. Assim como 13 de maio, data da abolição da escravatura legal, novembro atrai os olhares para uma causa que persegue as pessoas de pele escura no Brasil: serem invisíveis e, quando notadas, tratadas de forma inferior. Mas não é o suficiente. O problema não começa nem acaba nos estádios. A comoção causada após os insultos a Taíson, na Ucrânia, e a agressão verbal proferida contra um segurança no Mineirão, no último final de semana, expõem ainda mais uma ferida aberta há séculos na humanidade e, em particular, em nossa sociedade.
O GloboEsporte.com passou seis meses ouvindo atletas e treinadores negros de 60 clubes das Séries A, B e C. E o levantamento, feito sob a condição de anonimato por parte dos entrevistados, aponta: 48,1% afirmam terem sido vítimas de racismo no futebol. A histórica falta de punição das entidades que organizam as competições é um ponto a ser destacado. Afinal, somente nesta temporada Fifa e CBF criaram protocolos minimamente rígidos relacionados a casos discriminatórios.
Só que limitar a causa dessas agressões à falta de consequência é raso. É deixar de lado a história escravista que permeia nossa cultura. Porque o brasileiro foi ensinado a ser racista.
Entendendo as raízes
Um bom exemplo disso é que, há menos de 100 anos, a Constituição Federal de 1934 - documento redigido para assegurar liberdade, justiça e bem-estar social - pregava em seu Art. 138 “estimular a educação eugênica”. O movimento da eugenia, disseminado pelo antropólogo Francisco Galton, tentou usar o conceito da seleção natural - do livro A Origem das Espécies (1859), de Charles Darwin - para afirmar que a capacidade intelectual dos indivíduos era hereditária, por influência.
O pensamento foi importado para o Brasil em 1914, através do médico Miguel Couto - um dos responsáveis pelo artigo constitucional - e liderado pelo médico Renato Kehl, que apresentava como "soluções" para o país o branqueamento, o controle da imigração, a regulação de casamentos e da esterilização. É o que diz a mestra em história Pietra Diwan no livro "Raça Pura. Uma história da eugenia no Brasil e no Mundo".
"A gente tem que entender que o racismo não é algo que se limita ao futebol. Não podemos, nem devemos achar que o estádio de futebol é um apêndice da sociedade onde tudo é permitido e que as coisas que acontecem lá não trazem problemas históricos", explica Marcelo Carvalho, pesquisador e fundador do Observatório do Racismo.
.Levantamento aponta que quase metade de atletas e treinadores negros sofreram com racismo — Foto: Infografia GloboEsporte.com
"Embranquecimento" nos campos
Esporte destinado às elites, até então, o futebol não era palco para negros nas primeiras décadas do século passado. Em 1914, Carlos Alberto, que trocou o America-RJ pelo Fluminense, tinha por hábito passar pó de arroz no corpo para disfarçar a pele parda. Dez anos depois, foi a vez do Vasco da Gama sentir o peso social ao se ver obrigado a recusar o convite da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (Amea) de ingressar no Campeonato Carioca de 1924, por insistir em manter em seu elenco 12 atletas negros. Em um país que escravizou cinco milhões de indivíduos, 40% do total que foi trazido às Américas, ser negro era visto como algo inferior.
No documento que ficou conhecido como Resposta Histórica, o Vasco se negou a aceitar o corte dos atletas. Veja trecho:
“Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias.”
Trecho da Resposta Histórica do Vasco — Foto: Reprodução site oficial do Vasco
Falta engajamento?
Nem mesmo o maior atleta do esporte, Edson Arantes do Nascimento, passou incólume. Antes de se tornar Pelé, o principal nome que encantou os gramados do mundo era chamado de Gasolina (derivado do petróleo), Alemão, Crioulo... alcunhas que tinham como intuito ironizar a cor da pele do atleta. A questão racial, deixada de lado pelo Rei do futebol, enquanto atleta, segundo consta na biografia “Pelé: estrela negra em campos verdes”, de Angélica Basthi, veio à tona quando maior o nome do desporto mundial virou Ministro Extraordinário dos Esportes, no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995.
Se com a bola nos pés Pelé colocou por terra qualquer ideia de inferioridade negra, afinal, que suposta supremacia não se curvou ao 10? Na posição de ministro, Edson Arantes do Nascimento direcionou os holofotes para a falta de representatividade política dos negros.
"É bem mais fácil você eleger um negro para discutir o problema do negro. Se o negro quer que se tenha uma melhora na sua posição social e uma melhora do Brasil de uma maneira geral, temos de botar a gente no Congresso, para defender a nossa raça. Onde o Pelé chega, está chegando um cidadão brasileiro de cor negra. A minha bandeira é a do exemplo, da coisa séria," disse o Rei, à Rádio CBN, após reunião com a Executiva do Movimento Marcha contra o RacismoVinte e quatro anos depois, o panorama segue alarmante: três das 81 cadeiras do Senado são ocupadas por negros. Governadores? Nenhum.
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